No início de abril, a Vale, empresa responsável pelo rompimento da barragem em Brumadinho em 2019, entrou com um recurso contra a decisão judicial que determinou a complementação de valores para que o Programa de Transferência de Renda (PTR) não sofra redução das parcelas e seja pago em valor integral às pessoas atingidas até seu prazo de finalização. A decisão contestada pela mineradora também prevê a implementação de um auxílio financeiro emergencial até que condições de vida semelhantes às anteriores ao desastre-crime sejam retomadas.
Um dos argumentos da mineradora é que a decisão do juiz Murilo Silvio de Abreu se baseou na Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), instituída pela Lei 14.755 de 2023, mas ela não seria aplicável porque a legislação foi sancionada após o Acordo Judicial celebrado para estabelecer as ações de reparação relativas ao rompimento. No entanto, parecer elaborado pelo Instituto Guaicuy mostra que essa justificativa pode ser juridicamente contestada.
Leia aqui o parecer na íntegra
Um ponto relevante é que decisões já tomadas em relação ao rompimento da barragem da Samarco ocorrido em Mariana em 2015 levaram em consideração o que está indicado na PNAB, estabelecendo precedentes judiciais. Além disso, decisões e pareceres do caso Brumadinho, que afetou a Bacia do Rio Paraopeba e a Represa de Três Marias, têm considerado a Política devido ao fato dos danos relativos a ele serem continuados.
Precedentes de aplicação de uma decisão ou lei são muito importantes em casos de disputas judiciais. Nesse contexto, vale destacar que a PNAB aparece em alguns processos do rompimento em Mariana, que impactou o Rio Doce, mesmo com ele tendo ocorrido anteriormente à instituição da lei em questão. Levando isso em consideração, é possível justificar a aplicação da Política no caso do Paraopeba.
A PNAB foi utilizada como fundamento jurídico para garantir a participação ativa das pessoas atingidas em audiências de conciliação do eixo do processo de reparação voltado ao abastecimento de água para consumo humano. A decisão, de janeiro de 2024, baseou-se na centralidade do sofrimento da vítima e no direito à participação informada, aspectos estabelecidos pela lei em questão.
Outro precedente pode ser identificado no âmbito dos processos de cadastro e indenizações individuais. Em manifestação realizada em fevereiro de 2024, as Instituições de Justiça requereram que a Fundação Renova não adotasse o recebimento de indenização como um critério para exclusão do direito ao Auxílio Financeiro Emergencial. Esse requerimento foi baseado no trecho da PNAB que indica que o auxílio emergencial é um direito autônomo das populações atingidas e não se confunde com a indenização civil por danos sofridos.
Os precedentes mencionados reforçam que a aplicação da PNAB “não se limita ao momento de sua promulgação, mas projeta-se sobre situações de dano continuado, cuja materialização persiste no tempo”, como indica o parecer jurídico. As medidas de reparação integral devem estar de acordo com princípios da dignidade da pessoa humana, da centralidade da vítima e do não retrocesso em matéria de direitos humanos.
Mesmo assim, o embasamento da garantia dos direitos das pessoas atingidas pelo desastre-crime no Paraopeba tem sido questionado por uma suposta retroatividade da lei. Isso não se sustenta, entretanto, quando se considera a magnitude dos danos e seu caráter continuado. Há impactos que não apenas persistem como também se agravam ao longo do tempo, especialmente se considerados os atrasos no processo de reparação. Nesse sentido, fixar um marco temporal para ocorrência acaba por ocasionar na perda de direitos pelas pessoas atingidas.
Esse aspecto foi considerado pelo juiz Murilo Silvio de Abreu quando ele determinou a continuidade de auxílio emergencial que garanta “a manutenção dos níveis de vida até que as famílias e indivíduos alcancem condições pelo menos equivalentes às precedentes”, conforme indica a PNAB.
Um parecer dado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) sobre o mesmo assunto também indicou que um novo auxílio emergencial não modifica o Acordo Judicial de Reparação, outro argumento da Vale. Ele seria uma uma obrigação legal superveniente (subsequente) e se baseia no marco legal instituído pela PNAB que estabelece direitos próprios, sobretudo pelo fato de que os efeitos do desastre-crime permanecem em curso, mesmo que a Vale alegue ter cumprido suas obrigações reparatórias.
“A PNAB, instituída através da Lei Federal 14.755/2023, deve ser reconhecida como bússola normativa e considerada não apenas aplicável, mas de observância obrigatória, sendo o principal instrumento normativo a orientar a condução, monitoramento e eventual redirecionamento das medidas de reparação em curso no território Paraopeba e Represa de Três Marias”, indica o parecer elaborado pelo Guaicuy.
O objetivo da legislação é exatamente a proteção das populações atingidas em situação de vulnerabilidade estrutural e sua aplicação não deve depender da vontade das partes envolvidas no processo e nem pode ser afastada por acordos anteriores, o que seria uma afronta aos princípios constitucionais da legalidade.
Destaca-se, ainda, que a PNAB é fruto um longo processo de mobilização social, protagonizado especialmente pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e começou a tomar forma no Congresso Nacional em 2015, com base em uma proposta sistematizada pelo MAB em 2013, muito antes dos rompimentos nos rios Doce e Paraopeba.
Segundo a assessora do Guaicuy Paula Constante, uma das autoras do parecer, “o nosso objetivo é que esse documento fortaleça juridicamente as reivindicações das pessoas atingidas e contribua para responsabilizar a Vale por seus deveres. O auxílio emergencial é um direito das pessoas atingidas previsto na PNAB”.
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